22 de mai. de 2008

A Batalha do Coração

O Maraca foi arena para uma batalha épica de Libertadores. Uma partida sofrida, guerreada em todas as gotas de suor, em todas as lágrimas choradas; em cada bola levantada na área, em cada chute a gol, em cada drible, em cada falta. Nas brigas de Luiz Alberto e Thiago Neves, nos piques do Júnior César, na vontade do Thiago Silva, nas jogadas do Conca... nos gols de Dodô e de Washington.

A cada batida de coração. Um coração valente, que não desiste, não se rende, não se dá por vencido. Acredita até o fim, continua pulsando, não importa quantos golpes sofra, quantas cotoveladas na cara tome, quanto sangue escorra.


Meu coração acelera vendo o Maraca cantar.
80 mil pessoas no Maracanã, não importa o que diga a Globo, não importa o que diga a frieza dos números. Se não eram 80 mil numericamente, a força do grito da torcida valeu por muito mais. Gritou tanto que até a próxima partida de Libertadores o Maraca ainda estará ecoando esses gritos.

O coração ainda pulsa.


Os ânimos antes do jogo são tensos; mistério nas escalações – Jorge Wagner joga? Thiago Silva joga? Dodô joga? A imprensa paulista alardeia o SPFC como grande favorito, o Imperador como um craque que decidirá a partida. E muita reticência quanto ao tricolor carioca. E quanto a Washington. Se, por um lado, Adriano é aclamado, o Guerreiro Tricolor é execrado, “não marca há oito jogos”, péssima fase, etc.

Mas o coração ainda pulsa.

O jogo começa, e o único Tricolor do mundo – o resto são só times de três cores – parte pra cima do SPFC. Ali já era possível sentir. Já estava escrito há dez mil anos: o Fluminense ia vencer o São Paulo no Maracanã. O Fluzão era implacável.

Júnior César era um foguete pela esquerda, ninguém o parava no primeiro tempo. E num chute cruzado – o relógio marcava apenas doze minutos da primeira etapa –, a bola explode na zaga são-paulina e sobe, descreve um arco de dois metros e cai na cabeça de Cícero. Cícero!, que com sua impulsão espantosa, como se tivesse asas nos pés, sobe mais alto que Alex, e desvia a bola levemente com a cabeça. É o suficiente para superar os defensores paulistas.

Uns diriam que a bola encontrou Washington no meio da área. Perdoem-nos, pois não sabem o que falam: é Washington que, com seu faro de artilheiro, encontra a bola; é Washington que, com seu instinto matador, percebe a jogada antes dos demais; é Washington que, com sua alma de guerreiro, antecipa-se à zaga do São Paulo, e bate de lado de pé na bola, quase de calcanhar, e encontra livre o canto do gol.

A bola, caprichosamente, rola, lenta, quicando, para o fundo das redes, enquanto o artilheiro corre para reencontrar o grito da torcida, para reencontrar a festa depois do gol, para reencontrar o caminho da vitória. O grito sai do fundo do peito, do fundo da alma: é o brado de triunfo do Guerreiro Tricolor, que contém em si o grito de todos os Tricolores do estádio (e lembrem-se: Tricolor, só há um).

E o coração, vibrante, ainda pulsa.


O jogo prossegue, e o ímpeto Tricolor se acalma. O primeiro objetivo fora alcançado: marcar um gol no início da partida.
As ações estão equilibradas; o São Paulo acerta a marcação e as jogadas do Flu pela lateral diminuem. Ambas as equipes chegam ao ataque, mas sem ameaçar seriamente o gol adversário. O jogo começava a ficar tático e cauteloso.

Mas o Fluminense tem Darío Conca. E, pra vencer o São Paulo e a dureza da Libertadores, tem que ter Conca.

Que jogador é esse Conca! Que visão de jogo, que maestria no passe, que categoria no drible, que habilidade no chute! E que raça, que vontade, que ímpeto! É ao mesmo tempo cerebral e visceral esse Conca, maestro e instrumentista, armador e finalizador! É o melhor meia do Brasil!

Eis que Conca surge, carregando a bola, ameaça adentrar a área, mas corta para o meio; o zagueiro paulista fica na saudade – rola para o meio!, dizem os espectadores –, mas Conca sabe mais, Conca vê mais: ele enxerga Rogério Ceni adiantado, e bate na bola com a sua canhota genial, um chute milimétrico; a bola descreve uma curva perfeita, tem o endereço, é golaço... mas os dedos de Ceni triscam a bola, ela sobe meio centímetro, e é o suficiente para que caprichosamente carimbe o travessão. No rebote, Thiago Neves, no reflexo, cabeceia para fora.

E o coração, acelerado, ainda pulsa.


Segundo tempo de jogo, São Paulo retorna com Joílson no lugar do desastroso Jancarlos, que deixou uma avenida para Júnior César no primeiro tempo, e pouco apoiou.

Logo no início, aquele a quem chamam de “Imperador”, apenas em sua segunda participação no jogo, chuta para a boa defesa de Fernando Henrique.

Mas o Tricolor tem Conca. Em jogada de esperteza, o argentino corta rápido para o meio e chuta no canto do gol de Rogério Ceni, a quem restam apenas orações para que a bola não entre. Ela passa a poucos centímetros da trave esquerda do goleiro são-paulino e atinge em cheio sua toalha e garrafa d’água.

Renato Gaúcho, que armara bem o time no primeiro tempo, novamente incorre no erro em sua substituição: tentando deixar o time mais ofensivo, ele saca Arouca – que vinha jogando boa partida até ali – e põe Dodô, o artilheiro dos gols bonitos. Essa medida escancara o meio de campo tricolor, como uma ferida aberta, e dela o SPFC se utiliza para fazer o Fluminense sangrar.
Para isso, Muricy Ramalho coloca mais um guerreiro em campo: o visigodo Aloísio, para formar a frota de tanques de carne com Adriano. E o surpreendente Aloísio entra fazendo jogada de velocidade, tabela com Adriano e desfere um golpe quase certeiro. A bola passa por sobre a meta do goleiro Fernando Henrique.

O SPFC machuca o Fluminense no buraco aberto no centro da equipe, na avenida de grama que Cícero não consegue cobrir. Numa jogada em que os visigodos batem cabeça, Adriano acaba acertando o passe para Aloísio, que, incompetente, chuta mal e erra o golpe novamente.

Mas a dupla de guerreiros, sedentos pelo sangue Tricolor, não erraria uma terceira vez. Aloísio passa facilmente por Ygor (em um dos poucos combates errados que o volante/terceiro zagueiro deu no jogo) e cruza para Adriano, livre, desferir o golpe que parecia fatal: empate do São Paulo.

Mas o coração, mesmo que ferido, ainda pulsa.


Vale ressaltar que o único triunfo do “Imperador” deu-se em uma falha de marcação de Thiago Silva (a única do jogo). Em todas as outras, o paquiderme foi anulado pelo gigante Tricolor. Um dos lances foi particularmente impressionante. Em uma bola muito longa, Adriano parte à toda para cima do jovem Thiago, que apenas protege a pelota para que ela saia em tiro de meta para o Flu. Apenas com o corpo, Thiago Silva conseguiu conter a fúria desabalada do “Imperador”, que não conseguiu chegar à bola.

Thiago Silva foi um gigante em campo. Guerreiro ferido, sem ritmo de combate, ainda assim foi perfeito em quase todos os lances (só não o foi no lance do gol); antecipações, roubadas de bola, chutes para afastar da zaga, cabeçadas, toque de bola para sair jogando...

Chegou a sentir outra contusão durante a partida, mas encheu-se do sangue de encarnado, da fidalguia tricolor, e continuou na batalha, até o final. Foi um monstro, um guerreiro incansável, guardião inabalável da zaga tricolor. Nada passava por Thiago Silva.
Hoje, Thiago Silva foi o melhor zagueiro do mundo.

E o coração, com fidalguia, ainda pulsa.


Eis que, um minuto depois do gol são-paulino, alguém surge carregando a bola, passando pelo meio dos volantes paulistas. E quem?, quem mais poderia ser?, quem mais se não Conca, Darío Conca, el mago tricolor? Ele tabela com Thiago Neves (muito mais aguerrido no segundo tempo), e, num passe pelo alto, encontra Dodô na área.

Dodô, o artilheiro dos gols bonitos, cuja entrada abrira uma ferida no time do Fluminense, restaura o corte feito por Adriano. Com a bola quicando, ele chuta, não tão bem, para o gol do SPFC.

À sua frente, Rogério Ceni, capitão do São Paulo, símbolo do clube, vencedor do prêmio de melhor atleta do Campeonato Brasileiro de 2007 segundo a CBF, considerado o melhor goleiro do Brasil. Eis que Ceni – como ocorrera na final de 2006 contra o Inter, como ocorrera na semifinal do Campeonato Paulista contra Léo Lima – falha fragorosamente. A bola, lenta, passa por entre suas pernas abertas e, ainda lenta, morre no fundo das redes: atadura na ferida tricolor, espada que fere o São Paulo.

Não fosse esse contra-golpe velocíssimo, o Fluminense estaria condenado. Mas, nessa noite, tudo dava certo para o Tricolor. O Fluminense não se entregaria por nada, o Fluminense jogaria até o fim de suas forças, e além, para tocar fogo na frieza dos números, para derrubar paquidermes intransponíveis, para superar a dureza do mundo.

E o coração, renovado, ainda pulsa.


O tempo é inexorável. O relógio está a favor do São Paulo. Renato Gaúcho lança mão de Maurício no lugar de Ygor: quer dar mais qualidade ao passe e mais chegada no ataque sem prescindir da marcação. Muricy coloca Jorge Wagner.

O ponteiro avança; a batalha está perto do final, vem num crescendo, aproxima-se o clímax.

O coração, apressado, ainda pulsa.


Joílson, em duas faltas sem necessidade no meio de campo, toma dois cartões amarelos e é expulso. O SPFC está em desvantagem numérica – ah!, os números, sempre aliados do esquema tático, sempre a favor de Muricy, sempre dando a superioridade ao SPFC, são justamente eles os carrascos! – e o Tricolor enche-se dum ímpeto, duma inspiração divina, duma força que vem sabe-se lá de onde, e avança implacável sobre a defesa são-paulina. Gabriel, Maurício, Darío Conca – ah, como merecia um gol o argentino, para coroar sua magistral atuação! –, Thiago Neves, todos atacam a baliza de Rogério Ceni, que, a despeito da falha anterior, resiste bravamente.

Mas estava escrito há dez mil anos, estava nos planos dos deuses do futebol que o Fluminense saísse vitorioso nessa noite. A luz divina incide novamente sobre o herói, o combatente que todos julgavam abatido, o guerreiro que, a despeito de seu urro de vitória no início da batalha, mantivera-se calado durante todo o resto do tempo.

É tiro de canto para o Tricolor – o relógio, inimigo, assinala 46 do segundo tempo. Thiago Neves vai para a cobrança. Estrela de brilho apagado há algum tempo, o camisa dez das Laranjeiras sempre é capaz de, num arroubo de brilhantismo e categoria, arrancar do peito um último suspiro para fazer uma jogada genial.

E ele levanta a bola, que viaja, singrando no ar, certeira, milimétrica, em câmera lenta, para o centro da área são-paulina, para o cerne, para o âmago.

O coração parece pulsar mais lentamente. Três combatentes paulistas cercam o Guerreiro Tricolor. O batimento cardíaco perde outro compasso. Washington, um gigante de 80 mil metros, ergue-se mais alto que a zaga do São Paulo, fica acima do ar, deixa o mundo mortal para trás, alcança o Olimpo.

O tempo pára.

Sozinho, inalcançável, inexorável, irredutível, impiedoso, implacável, o Guerreiro Tricolor, tão Valente quanto seu Coração de Leão, trespassa o peito são-paulino com uma cabeçada certeira, perfeita, fatal: Rogério Ceni vai ao chão, e com ele o SPFC, derrotado pelo ímpeto do único Tricolor do mundo.


E o Fluminense, com sua fidalguia, com sua valentia, com seu coração, sai vencedor. Washington, o Coração Valente, Guerreiro Tricolor, corre pra soltar seu brado final, enquanto o comandante Gaúcho desaba no chão, aos prantos, sem conseguir conter a emoção pela vitória sofrida, épica, inesquecível.

Vence o Fluminense; com a garra, a força, a raça que lhe faltara no confronto anterior; o coração valente é maior que o peito, é do tamanho do Maraca, e vence o São Paulo, vence a batalha, vence a dureza do mundo.

E, vitorioso, ainda pulsa.

13 comentários:

Anônimo disse...

James M. Barrie escreve muito.
E ponto final.

luana xavier disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
luana xavier disse...

E eu achava que não dava pra ter, com mais nada, a mesma sensação de ontem, ao ver o jogo... Que tolinha. :p


Deixa que eu cuido desse coração - vibrante, acelerado, ferido, fidalgo, renovado, apressado e vitorioso [êêêê!].

James M. Barrie disse...

"Joguei com raça, ganhei do São Paulo, e, sim, venceria o Boca".

James M. Barrie disse...

Ah, e bastou um marcando o Adriano:

Thiago Silva, melhor zagueiro do Brasil e que já merece figurar, pra mim, entre os melhores do mundo.

Anônimo disse...

Realmente tenho que tirar o chapéu, bater continência, curvar os joelhos e agradecer por ter visto esse jogo histórico e ler o texto que quase me fez chorar de alegria por ser brasileiro/carioca/amigo do escritor.

Anônimo disse...

Uma grande vitória, mais uma escala?

Anônimo disse...

lindo, lindo, lindo. Quero esse autor para mim. sensível e másculo.

Anônimo disse...

Hhahaahhaahhahahah
Quem é essa pessoa?

Felipe Schmidt disse...

O gol do Dodô/frango do Ceni, pra mim, foi mais importante q a cabeçada do Washington. O São Paulo tava melhor, tinha acabado de fazer o gol. Mas bastou o Flu fazer akele golzinho sem vergonha logo depois q tudo voltou a clarear.

Como eu queria um Washington no Fla...

Ah, aquele Hernanes do São Paulo joga demais, é o cérebro deles. Aloísio entrou bem, e o Joílson também - anulou o Júnior César, até ser expulso. E aquele Jancarlos, hein? Horroroso.

Do lado do Flu, o Júnior César tá jogando demais, Conca é o pulmão do time. Mas tem uns q tao enganando, tipo o Gabriel.

Contra o Boca vai ser complicado. Tava falando com o Bony, eles jogam bem em casa, mas melhor ainda fora. Vai ser interessante ver eles jogarem num Maraca lotado...

James M. Barrie disse...

Javier.... diz:(sobre o Washington)
um hercules dos tempos modernos faltou dizer

E que venha o Boca.

Anônimo disse...

Foi um grande jogo, o Fluminense me supreendeu.

O Fluminense sobrando no primeiro tempo, Junior César livre pela esquerda. Até que no segundo tempo o Muricy fez ótimas substituições anulando o Junior César com o Joilson até ser expulso e o Aloísio entrou muito bem dando passe pro gol.
São Paulo dominou boa parte do segundo tempo, até sair o empate, mas em uma jogada de sorte Dodô fez um gol que ao meu ver foi frango do Ceni, não dando nem tempo de comemoração.
Washinton não jogou nada, mas marcou dois gols decisivos que deram a classificação ao Flu.

Que cena ridícula do Renato Gaúcho ao final do jogo querer sentar no gramado. Querendo roubar a cena, como se ele tivesse sido o "cara" do jogo.

Contra o Boca será mais um grande jogo, admiro muito o futebol deles, pois eles jogam sem medo, jogam fora como se estivesse jogando em casa.

Anônimo disse...

Putz.. mto bom mesmo.. parabéns pela matéria.. me emocionou!!!
O jogo foi mto foda.. E que venha o boca!!! =P
Quero ver a marra deles qd encararem o maraca lotado por essa torcida linda.. um show.. um clássico!
Abrapços!